17/07/2025
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Duas lógicas de tempos distintos se encontram nas ruas das cidades. De um lado, a remuneração por "peça", ou melhor, "por corrida", herança das fábricas da Revolução Industrial; de outro, a gamificação, técnica moderna vinda da engenharia dos jogos eletrônicos.
Ambas se misturam na rotina exaustiva de motoristas de aplicativo, que trabalham longas jornadas diariamente sob pressão algorítmica e estímulos performáticos.
Essa realidade foi vivida de perto pelo procurador do Trabalho Ilan Fonseca, do MPT/BA. Durante quatro meses, ele se licenciou do cargo para atuar exclusivamente como motorista de aplicativo em Salvador/BA.
A experiência teve um propósito acadêmico e pessoal: compreender, por dentro, a dinâmica do trabalho plataformizado. O resultado foi uma tese empírica transformada no livro "Dirigindo Uber: A Subordinação Jurídica na Atividade de um Motorista de Aplicativo".
O método de imersão e observação empírica, utilizado por Ilan, é pouco comum no campo do Direito, mas gerou forte repercussão.
"[...] a tese, a pesquisa, o livro, causa esse tipo de reação. Ou você gosta muito dela, ou você odeia. [...] Mas, assim, é difícil, realmente, o pessoal ficar indiferente à pesquisa" conta.
E não à toa: a "uberização" do trabalho, assim como a "pejotização", são fenômenos crescentes, mas ainda escassamente tutelados e de difícil enquadramento jurídico.
Ilan explica que sua vivência em 350 corridas e 352 horas online foi essencial para compreender o grau de precarização envolvido na atividade.
"Houve um total aproximado de R$ 1.300 de prejuízo nesses quatro meses, quando você computa todos os gastos, como: depreciação, seguro do automóvel, IPVA e outras taxas administrativas, que são gastos que os motoristas em geral não costumam computar. Eles só fazem o desconto realmente do combustível que eles realizam", relata.
Mais relevante que o saldo financeiro negativo, no entanto, foi o diagnóstico estrutural.
"Acham que eu tive prejuízo porque eu não soube trabalhar, mas esse é outro ponto muito controvertido. A questão de saber trabalhar ou não em plataformas [...] é muito mais uma questão que é estrutural do que uma decisão individual de inteligência, de sabedoria."
Gamificação anestésica
Ao longo da jornada, Ilan viveu na pele o que a literatura jurídica tem chamado de "gamificação do trabalho". A Uber lhe oferecia "missões", prometia "bônus", e usava emojis para estimular permanência online.
"É uma forma de você suavizar o sacrifício que o motorista de aplicativo sofre diariamente para realizar esse tipo de atividade. Então há uma forma de você extrair o máximo de trabalho desses motoristas, porque isso aí eu pude realmente sentir de maneira muito aguda."
Para o procurador, esse sistema ludificado serve para manter os motoristas sob subordinação funcional sem despertar para a noção de que o trabalho é "tedioso e sacrificante".
"Depois de algumas horas de trabalho, o seu corpo, mas principalmente a sua mente fica muito cansada. Então eu diria que se as plataformas digitais não fizessem uso da gamificação, esse trabalho dificilmente contaria com muitas horas. A partir de umas 7, 8 horas, além de ser sacrificante, ia ficando muito chato, muito tedioso e isso faria com que esses trabalhadores despertassem para perceber como isso é ruim, como esse trabalho é ruim, como esse trabalho é pouco gratificante, como esse trabalho tem pouco reconhecimento social."
Pejotização
Embora a tese não trate diretamente da pejotização, Ilan Fonseca observou durante a experiência como motorista de aplicativo que esse fenômeno se conecta intimamente à lógica precarizante das plataformas.
"Alguns motoristas de aplicativo que abriram MEI, ou seja, eles têm um CNPJ para trabalhar, não estão sendo contratados pelas plataformas digitais como o PJ, mas eles abriram MEI para fazer o recolhimento das contribuições previdenciárias. Porque uma parte desse motorista de aplicativo tem preocupação em receber alguma aposentadoria no futuro", explica.
A pejotização, assim como a uberização e a terceirização, aparece, segundo ele, como estratégia que transfere ao trabalhador todos os riscos da atividade, sem garantir contrapartidas mínimas de segurança jurídica e social.
"Esses três fenômenos estão diretamente relacionados a essa precarização do trabalho. Precarização no sentido de insegurança financeira, insegurança da manutenção das condições de trabalho. Insegurança no sentido do recebimento de benefícios previdenciários. Então, nesse sentido, a pesquisa somente reforçou em mim como essa precarização vai estar presente na pejotização, na uberização, na terceirização, e assim tem sido um fenômeno que só cresce", resume.
A ilusão da autonomia
Ilan também desmonta um dos mitos mais recorrentes sobre a liberdade do trabalho nas plataformas: a escolha.
Para ele, o que há é um fluxo contínuo e pouco qualificado de demandas, que prende o motorista em um ciclo de decisões forçadas por necessidade.
"Independentemente do local onde você esteja e do horário, se você ligar o seu aplicativo sempre vai aparecer corridas", afirma.
Mas isso não significa boas oportunidades. "Às vezes são corridas a 15 quilômetros de distância, fica inviável."
A aceitação, explica, decorre muitas vezes de "desconhecimento, ignorância financeira" ou de uma necessidade imediata de obter dinheiro.
No aeroporto, onde motoristas se reuniam para conversar, ouviu histórias que ilustram essa urgência. Um colega precisava pagar a mensalidade da escola do filho em três dias. Separado da mãe da criança, temia perder a guarda se não cumprisse essa única obrigação.
"Ele começa a entrar num ciclo de trabalhar a maior quantidade de horas possível, dormindo muito pouco e aceitando todo e qualquer tipo de corrida."
A lógica se torna perigosa.
"O carro pode ser enxergado às vezes como um cartão de crédito. Você faz a corrida, por pior que ela seja, você aceita ela e você vai acumulando um volume grande de dinheiro."
O problema, pontua, é que "a conta vai chegar" - e ela vem em forma de combustível, manutenção e depreciação do veículo. Mas tudo isso "vai ser depois do boleto".
Esse mecanismo de antecipação da renda, segundo Fonseca, é o que torna a atividade tão atraente, apesar do sacrifício.
"Você ter dinheiro na mão de uma maneira muito rápida, desde que você tope ir para lugares perigosos, pegar corridas deficitárias e durma muito pouco."
Um novo regime?
Ao comentar a possibilidade de criação de um marco legal específico para trabalhadores de aplicativo, Ilan Fonseca entende que qualquer legislação nova poderia vir para reforçar o que já existe na CLT ou adaptá-la às novas formas de trabalho.
Para ele, é preciso reconhecer que há, na atividade de motorista, elementos vantajosos de flexibilidade, como a possibilidade de interromper a jornada de trabalho a qualquer momento.
Ainda assim, alerta que essa flexibilidade não elimina a existência de subordinação nem dispensa proteção jurídica.
"A possibilidade também de você, no dia que você não quiser trabalhar, você não trabalhar, também é interessante, mas vai estar diretamente relacionada ao salário por peça, ou salário por produtividade, que é uma modalidade muito antiga de remuneração, desde a indústria têxtil."
Ao fazer esse paralelo com as costureiras do início da Revolução Industrial, Fonseca afirma que não há novidade jurídica real.
"Você não precisa mais ter uma subordinação no sentido de um local e um horário de trabalho, mas que ele permite exigir apenas a qualidade do serviço ou produto que está sendo entregue."
Por isso, acredita que uma nova legislação poderia apenas "deixar isso bem claro", reforçando o já previsto na CLT e na Constituição.
"A minha tese e a tese do Ministério Público do Trabalho é que, sim, a CLT, hoje em dia, ela já dá conta disso, no sentido de garantir direitos trabalhistas. A situação hoje em dia dos motoristas de aplicativo e entregadores é tão ruim que qualquer iniciativa que seja apresentada que garanta um pouco de direitos trabalhistas já vai ser recebido com muita alegria."
Consciência de classe
Durante o período em que atuou como motorista, Ilan realizou 10 entrevistas semi-estruturadas com outros condutores, sempre como passageiro.
"Eu sentava no banco de trás e ia entrevistando", conta. Aos poucos, os motoristas, que iniciavam a conversa "muito frios, muito objetivos e na defensiva", passavam a se abrir.
Dessas conversas emergiu um dado fundamental. "Os trabalhadores hoje em dia, eles têm perfeita consciência de que as condições de trabalho pioram ano a ano."
Segundo ele, motoristas que em 2016 ganhavam R$ 8 mil ou R$ 10 mil passaram a ter que trabalhar o dobro de horas para conseguir R$ 2 mil ou R$ 3 mil líquidos.
"Eles perceberam que os valores das corridas estão extremamente baixos, que tem muita oferta de corrida, mas poucas corridas são interessantes."
Ao mesmo tempo, notou que a qualidade do serviço também se deteriora. Isso ocorre num ambiente de crescente vulnerabilidade e estresse.
"A plataforma estimula esse conflito entre motoristas e passageiros a tornar ambos cada vez mais vulneráveis e dispostos a aceitarem qualquer tipo de coisa."
A consciência sobre a deterioração das condições, contudo, não é acompanhada, na mesma medida, pela percepção jurídica do vínculo.
"Eu diria que é meio a meio. Muitos motoristas já se enxergam como subordinados, como empregados."
Mas nem sempre compreendem juridicamente o que isso implica. Ele acrescenta que essa confusão é amplamente alimentada por um discurso empresarial persistente.
"Essa narrativa de que eles são empresários, empreendedores, acontece há 10 anos exclusivamente por parte das plataformas digitais."
Na ausência de uma posição clara do Estado, essa ideologia ganha força. Enquanto isso, quem mais se beneficia são justamente as empresas. A adesão ao discurso de autonomia é, em grande parte, induzida.
"Você vai assinalar um termo de uso, e nesse termo de uso está dito que você não possui nenhum tipo de relação de emprego."
Julgamento no STF
Ao comentar os julgamentos previstos no Supremo Tribunal Federal sobre a pejotização e os vínculos de trabalho nas plataformas digitais, Ilan Fonseca afirma que é muito importante que a posição que venha a prevalecer reconheça direitos trabalhistas que estão previstos na CF.
Ele enfatiza que o reconhecimento da subordinação e da proteção trabalhista não se opõe à inovação, mas exige uma leitura histórica e social da norma.
"Nenhum órgão, nenhuma ciência é contrária ao progresso, mas a gente precisa olhar um pouco para trás, para a nossa história e para perceber que a legislação, a Constituição, ela precisa ser aplicada para as pessoas, independentemente do tipo de trabalho que elas efetuam."
Fonseca alerta que os chamados "empreendedores" de aplicativo, ao contrário da narrativa propagada pelas plataformas, não possuem capital, nem estrutura empresarial.
"Eles não têm um conjunto de pessoas para administrar, eles só têm realmente a força de trabalho individual deles para oferecer."
Diante disso, manifesta "expectativa positiva" de que o STF, ao julgar os casos de pejotização, reconheça a dignidade do trabalho realizado nas plataformas.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/434827/procurador-do-mpt-relata-experiencia-apos-atuar-quatro-meses-como-uber
UGT - União Geral dos Trabalhadores