21/06/2022
"Era uma empresa bem bacana. A cultura deles era o que
chamava mais a atenção. O acesso aos líderes era muito fácil, os benefícios
eram bem bons também."
"O único problema era que as mudanças eram muito
rápidas, e não eram comunicadas. Um dos valores da empresa era a transparência,
mas isso era só no papel. Quando aconteciam as mudanças, a gente era sempre
pego de surpresa. Foi exatamente isso que aconteceu com as demissões",
conta uma trabalhadora demitida recentemente de uma startup de serviços residenciais.
"Marcaram de última hora uma reunião por vídeo com 36
funcionários. Foi onde eles comunicaram a demissão em massa de todo
mundo", diz a ex-funcionária, que optou pelo anonimato.
Segundo ela, o dono da empresa explicou que um grande
investimento esperado não aconteceu e, por conta disso, e das mudanças do
mercado, a empresa estava mudando seu modelo de negócios.
"Para mim, foi uma forma muito cruel de demissão. Todo
funcionário sabe que a qualquer momento pode ser demitido. Mas a notícia não
deveria ser dada na frente de todo mundo, após dias sem informação",
afirma.
"É inevitável que você se sinta injustiçada, diminuída,
por conta da situação. Ninguém pôde falar nada, porque os microfones foram
bloqueados. Então a gente só pôde ouvir e aceitar tudo que estava acontecendo.
Faltou transparência e empatia."
A demissão relatada pela trabalhadora é uma de centenas que
têm sido feitas nos últimos meses pelas startups brasileiras, em uma onda que
afeta também outros países.
Entre as empresas novatas que demitiram em massa
recentemente no país estão Facily, Kavak, Vtex, Favo, QuintoAndar, Loft, Olist,
Mercado Bitcoin, Zak, Bitso, TGroup, Sami e Sanar. Todas dispensaram dezenas, e
em alguns casos até centenas, de funcionários ao longo do primeiro semestre de 2022.
Os trabalhadores demitidos dizem compreender o cenário
macroeconômico, as dificuldades enfrentadas pelas empresas e a natureza volátil
de negócios novos e inovadores. Mas criticam a forma considerada desrespeitosa
como muitas dessas demissões coletivas têm sido conduzidas.
O caso da funcionária demitida por vídeo e em grupo não é
isolado.
A startup Zak, de gestão de restaurantes, por exemplo,
anunciou para seus funcionários em 13 de maio, em uma reunião por vídeo, que um
investidor havia voltado atrás num aporte de recursos e que, por conta disso, a
empresa iria demitir 40% do quadro.
Na sequência, os que seriam demitidos receberam convites
para reuniões de 20 pessoas, onde os gestores oficializaram as demissões,
relatam ex-funcionários.
"Tinha gente que começou na segunda-feira e foi
demitida na sexta. E eles estavam fazendo recrutamento ativo, trazendo pessoas
de outras empresas. Eu mesma estava em uma empresa há mais de um ano e fui
abordada por um recrutador da Zak. Fiquei pouco mais de 30 dias e aconteceu
essa demissão em massa", conta uma funcionária demitida que também optou
pelo anonimato.
Procurada pela BBC News Brasil, a Zak afirmou em nota que
vem sofrendo as consequências de um cenário macroeconômico adverso.
"Estamos comprometidos a apoiar todos os colaboradores afetados e
reiteramos que esta decisão foi tomada com extremo cuidado e ponderação, e como
último recurso", completou a empresa.
Juros em alta e fuga de investidores
Felipe Matos, presidente da Abstartups (Associação
Brasileira de Startups), destaca que a onda de demissões coletivas em startups
é um fenômeno global, resultado do aumento das taxas de juros pelos governos
para combater a inflação.
"Quando os juros sobem, os investimentos de risco
costumam ser penalizados. Basicamente, do ponto de vista dos investidores, vale
mais a pena deixar o dinheiro em aplicações mais seguras, como títulos do
tesouro e outras aplicações indexadas às taxas de juros, do que arriscar investir
em uma startup ou no sistema produtivo, que são investimentos de risco muito
maior", diz Matos.
Além de impactar o balanço entre risco e retorno dos
investimentos, a alta de juros também afeta o valor das empresas
("valuation", no jargão de mercado em inglês). Isso porque esse valor
é estimado calculando o fluxo de caixa futuro da empresa, descontada a taxa de
juros. Assim, quanto maiores os juros, menor a avaliação das companhias.
O aumento dos juros também implica em desaceleração da
atividade econômica, já que fica mais caro para famílias e empresas tomarem
empréstimos para consumir e investir. Com isso, a própria geração de caixa das
empresas é prejudicada e muitos planos de crescimento precisam ser revistos.
"Enquanto antes tinha um paradigma em que valia mais a
pena crescer do que ser lucrativo, porque existiam investidores dispostos a
bancar esse crescimento, mesmo com caixa negativo, agora isso não é mais
verdade. As empresas precisam ter mais atenção ao caixa, mesmo que isso
signifique crescer mais devagar", afirma.
"É basicamente por isso que temos visto essa onda de
demissões", diz o representante. "Ninguém sabe exatamente quanto
tempo esse ciclo vai durar, nem o quão profundo ele será, se viveremos uma
crise maior. É difícil prever, mas as empresas estão se preparando, congelando
investimentos e conservando caixa para atravessar essa fase em que se espera
que haverá menos capital disponível."
Para Matos, o desconforto de trabalhadores com a forma como
algumas demissões em massa têm sido conduzidas está relacionado à própria
natureza da demissão coletiva por questões econômicas ou de reestruturação das
empresas.
"É um problema de qualquer demissão em volume. Uma
coisa é demitir alguém por questão de performance, em que a pessoa recebe um feedback
[retorno], existe uma avaliação. Essa é uma demissão que está dentro do
esperado. Quando vem uma crise e a empresa precisa cortar, muitas vezes ela
corta pessoas que têm um bom desempenho. Isso sempre vai causar
desconforto."
Me senti descartado, foi humilhante
Desconforto é pouco para descrever o que sentiu o carioca
Vinicius Mota ao ser demitido da Kavak, startup de revenda de carros usados.
"Me senti usado e descartado. Ser mandado embora é
normal, todo contrato uma hora chega ao fim. Mas a forma como foi conduzido foi
humilhante. Não só para mim, mas para 90% dos colaboradores", diz o
técnico em manutenção automotiva de 28 anos.
Mota, que trabalhou por cinco meses como inspetor de
qualidade na Kavak até ser demitido, conta que os funcionários já vinham
percebendo uma queda de movimento nas vendas, mas eram repetidamente
assegurados pela gerência de que estava tudo bem e dentro do planejado.
Em 6 de maio, a empresa inclusive realizou um grande evento
no Rio de Janeiro, reunindo toda a equipe com um farto café da manhã e
assegurando que ninguém seria demitido, relata.
Um mês depois, em 7 de junho, a equipe foi chamada para uma
reunião, sem informação do que seria discutido. Na chegada, os funcionários
foram recebidos por seguranças, portando listas com nomes. Os funcionários eram
então encaminhados ao 6º andar ou ao interior da loja — posteriormente, ficaram
sabendo que no 6º andar estavam os "salvos" e na loja, os demitidos.
Os cerca de 50 funcionários reunidos dentro da loja tiveram
que aguardar por quase uma hora, cercados por seguranças, sendo impedidos de
bater o ponto, tomar café ou ir ao banheiro sem acompanhamento, lembra o
técnico em manutenção.
Objetos e carros haviam sido retirados da loja, o que fez os
trabalhadores — a maioria de operação e vindos de bairros populares do Rio —
sentissem que havia um temor de que eles pudessem roubar ou destruir algo,
embora naquele momento ainda fossem funcionários da empresa.
Por fim, os funcionários foram divididos em grupos de 12 a
15 pessoas e a demissão feita através da leitura — por gerentes que não eram os
gestores diretos dos demitidos — de uma carta formal, que dizia que a
estratégia da empresa havia mudado.
Estima-se que a empresa tenha demitido 300 pessoas no Rio e
em São Paulo nesse último mês, mas a Kavak não confirma o número oficial.
Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa da empresa respondeu
em nota que "a Kavak prefere não comentar".
Mota conta que alguns colegas pensam em entrar com processo
contra a empresa por assédio moral no momento da demissão. Ele se concentra na
busca por um novo emprego, mas quer agora ficar longe de startups.
"Prefiro passar longe, como profissional eu não confio mais", afirma.
O que diz a legislação sobre demissões coletivas
Ricardo Calcini, professor de direito do trabalho na FMU,
observa que, após a reforma trabalhista de 2017, a demissão individual e a
coletiva passaram a ser consideradas equivalentes, sendo dispensada autorização
prévia por parte do sindicato profissional.
Em 8 de junho deste ano, o STF (Supremo Tribunal Federal)
ratificou esse entendimento, mas estabeleceu que os sindicatos devem ser
comunicados sobre dispensas coletivas.
Nas startups, que são empresas jovens, com alta rotatividade
e onde os trabalhadores em geral não estão ligados a sindicatos, Calcini avalia
que acaba prevalecendo o texto da reforma trabalhista.
"Sem representatividade [sindical], com número reduzido
de funcionários e um giro grande, quando o Supremo fala que tem que comunicar o
sindicato, para as startups ficou algo vazio", afirma.
O especialista lembra que os dispensados em demissões
coletivas têm todos os direitos normais de uma demissão: aviso prévio de 30
dias indenizado, 13º salário proporcional, férias proporcionais acrescidas do
terço constitucional, multa de 40% do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço), liberação das guias para saque do FGTS e saldo de salário.
Quanto à possibilidade de ir à Justiça por situações
abusivas no momento da demissão, Calcini afirma que é preciso avaliar caso a
caso.
"A Justiça do Trabalho entende uma conduta como
assediante quando ela passa do razoável. Toda vez que houver excesso ou abuso
do exercício do poder de dispensa, isso pode configurar dano moral e ser
passível de indenização correspondente. Mas isso tem que ser avaliado caso a
caso."
Responsabilidade emocional
Marina Proença, cofundadora da Favo, startup de venda direta
de produtos de supermercado para a classe C, passou pela experiência da
demissão coletiva neste início de junho, mas na outra ponta.
Com a decisão da empresa de encerrar atividades no Brasil e
focar no negócio peruano, a empreendedora demitiu em um dia 171 funcionários
diretos e comunicou a suspensão da operação brasileira aos mais de 7 mil
representantes comerciais e 40 motoristas parceiros.
"Fizemos um plano muito detalhado, para cuidar que nada
fosse feito de maneira grosseira. Fizemos todas as conversas com os
funcionários um a um, com a comunicação majoritariamente feita em dupla — o
gestor direto e mais uma pessoa para ajudar a tirar dúvidas. Tudo foi feito em
um dia, para evitar que as pessoas ficassem ansiosas", conta Marina.
As conversas foram feitas por vídeo, pois a empresa não tem
escritório, e tiveram duração de 5 a 10 minutos cada, com espaço para os
demitidos falaram o que quisessem. Alguns grupos pediram para ter conversas
mais longas posteriormente.
Aos funcionários diretos, o plano de saúde e o vale
alimentação foram estendidos por alguns meses e os computadores e celulares,
oferecidos para compra por valores reduzidos.
Para os representantes comerciais com situação de renda mais
crítica, foi criado um plano de "desmame" com a manutenção da
operação reduzida por mais 30 dias. A empresa também tenta ajudar na
recolocação de funcionários, representantes comerciais e motoristas, inclusive
através de parcerias com empresas concorrentes.
A empresa criou ainda uma lista oficial de talentos para
apresentar seus funcionários a possíveis novos contratantes. A lista foi
publicada no site Layoffs Brasil, criado pelo carioca João Gabriel Santos, de
21 anos, para ajudar na recolocação dos demitidos em massa por startups.
"Eu fiquei com muito medo, tanto de fazer as demissões,
como de avisar os vendedores. Porque é muito triste, as pessoas doam muito do
seu afeto. Mas combinamos de ser extremamente transparentes, apesar da
dor", diz a fundadora.
"Não consigo nem imaginar fazer de outro jeito, apesar
de já ter passado por isso em outros lugares quando não era minha empresa.
Infelizmente, acho que a menor parte dos líderes e dos empreendedores têm uma
responsabilidade emocional com a empresa. Quando a gente fala em segurança
psicológica, a maioria não sabe nem o que é isso", afirma.
É possível demitir em massa de maneira humanizada?
Para Rafael Souto, especialista em recursos humanos e
presidente da Produtive, consultoria especializada em recolocação no mercado de
trabalho, a demissão não deve ser encarada pelas empresas como um evento
isolado, mas como um processo, que requer preparo dos gestores.
"A demissão pode ser feita por vídeo, mas não pode de
forma alguma ser feita de forma coletiva", diz o consultor.
"Os gestores de cada área devem fazer a comunicação
individualmente, porque uma das premissas para uma demissão responsável é você
comunicar a decisão sem enrolação, explicar os motivos de forma clara e escutar
a pessoa. Faz parte da demissão humanizada dar espaço para a pessoa falar e é
importante ouvir", acrescenta.
Segundo Solto, a comunicação individualizada é importante
também para que a pessoa seja orientada adequadamente sobre os próximos passos
— como a entrega de documentos necessários ao processo de demissão —, que devem
ser apresentados em uma sequência organizada.
Quanto a benefícios adicionais ao mínimo legal estabelecido
pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o consultor explica que eles
podem ser de três tipos: bônus em dinheiro; extensão de benefícios como plano
de saúde, vale alimentação e auxílio educação; e apoio à recolocação.
"A demissão tem vários envolvidos: o desligado, os
familiares, a sociedade e os empregados que ficam", diz Souto.
"Então cuidar da saída de uma forma profissional,
humanizada e com responsabilidade também impulsiona a marca empregadora, para
quem está saindo e leva a imagem da empresa ao mercado; para quem fica e sabe
que o colega que saiu foi tratado de maneira respeitosa e com apoio; e para a
marca perante a sociedade como um todo."
Fonte e Foto: G1
UGT - União Geral dos Trabalhadores