05/07/2022
Levantamento da CGU inclui processos concluídos entre 2008 e
junho de 2022; especialistas falam em subnotificação
Dois em cada três processos de investigação por assédio
sexual na administração pública federal terminaram sem qualquer penalidade,
segundo dados fornecidos pela CGU (Controladoria-Geral da União) a pedido da
Folha.
De 2008 até junho de 2022, foram instaurados 905 processos
correcionais para apurar casos de assédio sexual, dos quais 633 foram
concluídos e outros 272 ainda estão em andamento.
Entre as investigações já finalizadas, 432 chegaram ao fim
sem punição, o que representa 65,7% do total. As demais resultaram em
advertência (41), suspensão (90) ou demissão (95) do agressor.
A soma de penalidades (incluindo sua ausência) é maior que o
total de processos porque em algumas apurações havia o envolvimento de mais de
um agente público.
O levantamento da CGU inclui processos instaurados no âmbito
da administração direta, autarquias e fundações, o que compreende ministérios,
agências reguladoras e universidades federais.
Os dados não incluem empresas públicas, como é o caso da
Caixa Econômica Federal, palco das mais recentes acusações de assédio sexual
feitas por funcionárias contra o agora ex-presidente da instituição Pedro
Guimarães.
As acusações foram reveladas na terça-feira (28) pelo portal
Metrópoles, que relatou também a existência de uma investigação no Ministério
Público Federal. Após a divulgação, o caso entrou na mira do TCU (Tribunal de
Contas da União) e do MPT (Ministério Público do Trabalho).
As mulheres narraram episódios como toques íntimos sem
consentimento, convites incompatíveis com o ambiente profissional e outras
condutas inapropriadas.
Uma funcionária da Caixa disse em depoimento à Folha que
também foi assediada por Guimarães, presidente da instituição, em um caso até
então desconhecido pelas autoridades. Após as primeiras denúncias, o número de
mulheres que relatam terem sido alvo de assédio no banco tem aumentado.
Em setores do governo, há o temor de que a prática tenha se
tornado uma cultura organizacional dentro da Caixa. O banco contratou uma
auditoria externa para aprofundar as investigações, e a nova presidente,
Daniella Marques, promete rigor nas apurações.
O número de processos por assédio sexual na administração
federal cresceu de forma contínua até 2019, quando teve um pico de 243 novos
registros. Em 2020, o trabalho remoto contribuiu para a queda dos números,
embora especialistas ressaltem que houve, em paralelo, um aumento nos casos de
violência doméstica.
Segundo a CGU, a instauração do processo não é imediata. O
chamado "procedimento correcional" é aberto após análise preliminar
da ouvidoria, que verifica se a denúncia contém os elementos necessários.
Também é realizado juízo de admissibilidade na área correcional, que conclui ou
não pela necessidade de apuração.
Mesmo com essa análise prévia, dois terços dos casos
terminam sem penalidade. "Os casos de arquivamento podem ter sua causa na
não configuração [da prática de assédio], na ausência de provas, entre outros
fatores", diz a CGU.
Já as punições são, em geral, aplicadas após enquadramento
do agente por "descumprimento de deveres funcionais", já que a
prática do assédio sexual não está prevista como infração disciplinar na lei
8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da
União.
Apesar da tendência de alta no número de processos que
apuram assédio sexual na administração pública, especialistas afirmam que
muitos casos ainda passam longe do radar das autoridades, diante da dificuldade
das vítimas em relatar o ocorrido.
"Uma denúncia, ainda mais vinculada com relação de
trabalho e relação de poder, é sempre difícil por natureza. No caso de uma
denúncia de assédio sexual, há elementos que dificultam ainda mais. Há casos de
mulheres que são culpabilizadas, ou se sentem envergonhadas", afirma a
advogada Tainã Gois, doutora em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) e
conselheira de política para mulheres na Prefeitura de São Paulo.
"A moral da mulher é muito questionada. A denunciante
do assédio sexual tem que provar o tempo todo que ela pode ser uma vítima. Ela
vai primeiro ser julgada", afirma Gois.
Para ela, a não punição em dois terços dos processos por
assédio sexual na administração pública pode indicar dificuldade em conseguir
dar consequência às ações desses agentes. No entanto, ela pondera que, mesmo na
ausência de uma penalidade formal, o acusado pode, por exemplo, acabar sendo
transferido de cargo.
A procuradora do MPT Andrea Gondim, coordenadora nacional de
Promoção da Regularidade do Trabalho na Administração Pública, avalia que ainda
há uma cultura de violência e assédio contra a mulher disseminada na sociedade
brasileira, que acaba sendo transportada para o ambiente de trabalho.
"Essa violência cotidiana também acontece no nosso
ambiente de trabalho, desde a interrupção da fala da mulher pelo homem, a apropriação
de ideias, até essa escalada da violência que pode se revelar por meio de
comportamentos sexuais indesejados", afirma.
"Embora diversas empresas e órgãos tenham canais para
denunciar esse tipo de violência, muitas vezes esses canais não funcionam ou
acabam não dando resposta efetiva à situação, o que acaba aprofundando o
problema", acrescenta Gondim. Segundo ela, a sensação de que a acusação é
ineficaz pode desencorajar futuras denúncias.
A subnotificação dos casos de assédio sexual é citada em
estudo temático sobre o tratamento correcional do assédio sexual, realizado
pela auditora da CGU Sandra Yumi Miada em 2020. Entre as barreiras estão o medo
de represália ou retaliação (como demissão e rebaixamento de função), medo de
transferência, receio de exposição extrema no ambiente de trabalho e familiar,
dificuldade de abordagem do assunto ou descrédito diante do relato da vítima.
No estudo, a auditora se debruçou sobre 49 dos processos
instaurados para apurar a conduta de assédio sexual na administração federal e
que foram concluídos no período de janeiro de 2015 a outubro de 2019.
Em 96,15% dos casos, as vítimas eram do sexo feminino. Já os
agressores eram do sexo masculino em 100% dos episódios analisados. Em 32% dos
processos, as vítimas eram menores de idade.
No estudo, a taxa de punição dos processos disciplinares por
assédio sexual foi de 38,78% —podendo chegar a 51,35% quando desconsiderados
processos cuja análise ficou prejudicada no estudo por ausência de informações
sobre seu resultado.
As conclusões do trabalho foram citadas pelo TCU em
auditoria operacional aberta em 2020 para elaborar uma radiografia do tema. Um dos
resultados foi a formulação de um modelo de prevenção e combate ao assédio, com
recomendação das melhores práticas.
Após as denúncias contra Guimarães, o TCU abriu uma
fiscalização específica para avaliar toda a política de prevenção e combate ao
assédio sexual na Caixa.
"A melhor situação para a mulher é não ser assediada. A
punição é uma resposta para a vítima, mas a resposta para a sociedade é uma
transformação do ambiente de trabalho, do ambiente institucional", afirma
a advogada Tainã Gois.
Andrea Gondim, do MPT, ressalta que o Brasil ainda não
aderiu à Convenção 190 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que
estabelece conceitos e definições jurídicas para lidar com o assédio moral e
sexual no ambiente de trabalho, seja no setor público, seja no setor privado.
"Seria um excelente instrumento para tratar do tema", diz.
Segundo ela, o MPT foi um dos signatários de uma carta à
Presidência da República pedindo que o governo envie ao Congresso proposta de
ratificação da convenção, para que ela seja aplicada no Brasil, mas isso ainda
não ocorreu.
Fonte e Foto: Folha de São Paulo
UGT - União Geral dos Trabalhadores